"Il est des jours de brume et de lumière vague,
Où l'homme, que la vie à chaque instant confond,
Étudiant la plante, ou l'étoile, ou la vague,
S'accoude au bord croulant du problème sans fond."
Victor Hugo
Introdução
Números, no mundo real, raramente são apenas números. Pelo contrário, quase sempre apresentam-se como valores relativos a um certo atributo, categoria, unidade de medida. Se alguém dissesse: "este prédio tem 48", nossa resposta imediata seria, "48 o que?"
Imaginemos um prédio com 48 metros de altura. Isso é tudo que podemos dizer sobre este prédio? É claro que não. Podemos enumerar uma série de valores e atributos que descrevem esse prédio e compõem sua existência. Por exemplo:
prédio = %{
altura: 48,
unidades: 64,
cores: [:branco, :laranja],
categoria: :comercial,
completo: true
}
Essa descrição é bastante inteligível, e nos permite imaginar um prédio real. Levando esse exercício mais longe, poderíamos abstrair os valores específicos, descrevendo um prédio platônico, uma ideia de todos os prédios possíveis. Construiríamos, assim, um tipo de dados prédio, composto pelos diferentes tipos de dados que descrevem os prédios (altura, unidades, cores, categorias, estágio de construção).
Neste artigo, explicaremos os tipos de dados algébricos, isto é, como definir tipos de dados compostos de tipos singulares e as regras que governam sua composição. Mostraremos os exemplos mais comuns de tipos de dados algébricos, como tipo multiplicação e soma de tipos, tipos de funções ou exponenciação de tipos, e tipos recursivos, utilizando exemplos na linguagem Elixir.
Tipos de dados
Toda computação é uma operação sobre valores de determinados tipos. Para explicar os tipos de dados, a ciência da computação costuma referir-se ao tamanho e à disposição dos números binários que expressam os elementos de diferentes tipos: desta maneira é formalizada a distinção entre Integers e Longs, Floats e Doubles -- quanto maior o espaço em memória reservado aos valores, maior a precisão ou o limite de valores representáveis. A mesma explicação vale para coleções de tipos, como arrays de tamanho fixo: o tamanho da coleção é o tamanho do dado multiplicado pelo numero de entradas na coleção
Entretanto, essa explicação é limitada quando queremos nos referir a certos valores computáveis. Por exemplo, como podemos expressar em termos de quantidade de bits uma coleção com um número indeterminado de valores; ou, em outras palavras: qual é o tamanho de uma coisa da qual não sabemos o tamanho?
@spec tamanho(list()) :: integer()
def tamanho([]), do: 0
def tamanho([h|t]), do: 1 + tamanho(t)
É claro, neste exemplo, que o tipo list()
não pode ser definido em termos de quantidade de bits, porque a quantidade varia de acordo com o tamanho da lista. Vamos, então, usar outra explicação: tipos são representações abstratas de valores possíveis de operações computacionais. Em uma analogia com a teoria matemática dos conjuntos, um tipo é um conjunto de valores.
Tipos de dados algébricos
Da mesma maneira como somos capazes de criar funções que operam sobre números e produzem determinados valores, podemos definir operações sobre tipos de dados, que produzam tipos compostos de outros tipos.
Entretanto, tipos de dados são muito diferentes de números. Antes de realizar operações com tipos de dados, precisamos descrever uma certa álgebra que governe as regras de composição dos tipos. Para isso, recorremos à matemática, especificamente à teoria dos conjuntos.
Tipos de dados algébricos nos permitem definir coisas como:
#apelidos
@type palavras_magicas :: charlist()
@type resultado :: boolean()
#tipos compostos
@type elemento() :: :fogo | :terra | :agua | :ar
@type mistura() :: {elemento(), elemento()}
@type transformacao(a, b) :: (a -> b)
#tipos recursivos
@type lista(a) :: {} | {a, lista(a)}
@type arvore(a) :: {} | a | {arvore(a), arvore(a)}
Entendidos de forma matemática, tipos de dados algébricos podem ser definidos em termos de três operações básicas: soma, multiplicação e potenciação. Assim como entendemos um tipo de dados como o conjunto dos seus valores possíveis, um tipo composto é o conjunto dos valores possíveis resultante da composição.
Soma de tipos
O que significa falar sobre a soma de dois tipos de dados, como "inteiro mais booleano"? A idéia parece estranha a princípio. Para entender, vamos primeiro pensar sobre a soma de números, que já conhecemos: dois mais três são cinco, quatro mais cinco são nove, e assim por diante.
A soma de tipos é semelhante. Se descrevermos um tipo como o conjunto dos valores possíveis, a soma de tipos é a soma do número desses valores. Por exemplo, imaginemos um tipo "certeza", com dois valores: verdadeiro e falso; imaginemos um tipo que tem apenas um valor possível, e vamos chamá-lo de "dúvida". Somando os dois tipos, compomos um tipo com três valores possíveis: ou é verdadeiro, ou é falso, ou é duvidoso. Vamos chamar esse tipo de "hipótese":
@type duvida() :: :undefined
@type certeza() :: boolean()
@type hipotese() :: duvida | certeza
valores_possiveis = [
true,
false,
:undefined
]
É fácil entender que somamos tipos com 1 e 2 valores, e obtivemos um tipo com 3 valores. Em matemática, na teoria dos conjuntos, essa composição é chamada de disjunção: "A ou B".
Funções que aceitam tipos compostos dessa maneira apresentam comportamentos diferentes dependendo do tipo de dado utilizado (o que nos levaria a um outro tópico, polimorfismo, que não trataremos neste artigo). Para isso, é necessário utilizar estruturas condicionais, como if, guards ou pattern match:
@type t() :: boolean() | integer()
@spec f(t()) :: atom()
def f(x) when is_boolean(x), do: :bool
def f(x) when is_integer(x), do: :int
Representamos a soma de tipos como a + b
.
Multiplicação de tipos
A multiplicação de tipos segue uma lógica semelhante. Para entender, vamos primeiro pensar sobre a multiplicacão de números, que já conhecemos: dois vezes três são seis, três vezes três são nove, e assim por diante.
A multiplicação de tipos é semelhante. Se descrevermos um tipo como o conjunto dos valores possíveis, a multiplicação de tipos é a multiplicação do número de valores desses tipos. Por exemplo, imaginemos um tipo "materiais", com dois valores: "madeira" e "pedra"; imaginemos um tipo "cores", com três valores, "branco", "amarelo" e "azul". Multiplicando os dois tipos, compomos um tipo com seis valores possíveis. Vamos chamar esse tipo de "casa":
@type material() :: :madeira | :pedra
@type cor() :: :branco | :amarelo | :azul
@type casa() :: {material(), cor()}
valores_possíveis = [
{:madeira, :branco},
{:madeira, :amarelo},
{:madeira, :azul},
{:pedra, :branco},
{:pedra, :amarelo},
{:pedra, :azul}
]
É fácil entender que multiplicamos tipos com 2 e 3 valores, e obtivemos um tipo com 6 valores. Em matemática, na teoria dos conjuntos, o número de valores do produto de dois tipos corresponde ao produto cartesiano de dois conjuntos, e o valor composto a uma intersecção, "A e B".
Para nossa surpresa, esse tipo de dado algébrico não é uma novidade, mas um velho conhecido: uma tupla de n valores. Esta é a razão por que os records em Erlang (nome dado para structs ou hash tables, coleções de valores de tipos distintos) são implementados simplesmente como tuplas normais.
-record(casa, {material, cor}).
#casa{material=madeira, cor=branco}.
% é o mesmo que
{casa, madeira, branco}
Representamos a multiplicação de tipos como a * b
.
E quando o número de valores for infinito?
Quando entendemos a composição de tipos de valores finitos, fica fácil entender a composição de tipos de valores infinitos. Lembremos que na matemática, na teoria dos conjuntos, nem todos os infinitos são iguais: o conjunto dos números reais é infinito; o conjunto de números divisíveis por 999 também é infinito, mas eles são infinitos muito diferentes.
Vamos definir um tipo "booleano inteiro"; em outras palavras, um número que pode ser verdadeiro ou falso. Para isso, multiplicamos o tipo booleano pelo tipo inteiro. Nosso novo tipo tem um número de valores possíveis que é o número de valores possíveis do tipo booleano vezes o número de valores possíveis do tipo inteiro:
type booleano() :: :verdadeiro | :falso
type inteiro() :: 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | ...
type bool_int() :: {booleano(), inteiro()}
valores possíveis = [
{:verdadeiro, 1}, {:verdadeiro, 2}, {:verdadeiro, 3}, ...,
{:falso, 1}, {:falso, 2}, {:falso, 3}, ...
]
Tipos de funções
Em muitas linguagens de programação, funções são objetos de primeira classe, ou seja são entidades em si próprias, e podem ser registradas em variáveis, passadas como argumentos de funções ou retornadas como resultados de uma função. A exponenciação de tipos é a composição de tipos em tipos de funções, isto é, corresponde ao conjunto de funções que mapeiam valores de um tipo a outro.
Por exemplo, podemos definir um tipo de função "validação numérica" que aceita um valor inteiro e retorna um valor booleano. Utilizamos funções do tipo "validação" como funções de alta ordem, aplicando à função "validar" para garantir que um valor é válido ou não para determinada aplicação:
@type validacao() ::
(integer() -> boolean())
@type resultado() ::
{atom(), integer()} | {atom(), charlist()}
@spec validar(integer(), validacao()) :: atom()
def validar(x, regra) do
if regra.(x) do
{:ok, x}
else
{:erro, "valor inválido"}
end
Tipos de dados algébricos nos proporcionam propriedades interessantes para pensar a lógica e a matemática das funcões em programas computacionais. Por exemplo, sabemos que na álgebra do conjunto de números reais, a seguinte propriedade é válida: a^(b+c) = a^b * a^c
. Ora, esta propriedade também é válida para tipos algébricos:
@type elemento() :: :agua | :ar | :fogo | :terra
@type espirito() :: :trevas | :luz
@type efeito() :: :boom | :kablam
# a^(b+c)
@spec magia(elemento() | espírito()) :: efeito()
def magia(poder) do
cond do
elemento?(poder) -> :boom
espirito?(poder) -> :kablam
end
end
# a^b * a^c`
@spec feitico(elemento()) :: efeito()
def feitico(poder) when elemento?(poder), do: :boom
@spec bruxaria(espirito()) :: efeito()
def bruxaria(poder) when espirito?(poder), do: :kablam
defp elemento?(x), do: x in [:agua, :ar, :fogo, :terra]
defp espirito?(x), do: x in [:trevas, :luz]
O que a propriedade descreve é que o mesmo cálculo pode ser representado de duas maneiras distintas: como duas funções que aceitam tipos a e b, ou como uma só função que aceita um tipo composto a + b.
Tipos recursivos
Vimos como representar tipos compostos de um número definido de elementos: pares, tuplas, variantes. Estes tipos, embora nos proporcionem um grande poder expressivo para estruturar os dados de um programa, ainda não respondem uma questão que colocamos no início: como podemos representar um conjunto com um número indefinido de elementos?
Para isso, precisamos recorrer a um dispositivo que nos permita trabalhar com repetições. Em programação funcional, esse dispositivo é a recursão. Da mesma maneira como podemos definir funções recursivas que expressam-se em termos de si mesmas, podemos definir tipos que expressam-se em termos de si mesmos, recursivamente. Podemos, por exemplo, definir uma lista como a junção de um elemento a uma lista.
Vamos definir uma lista de animais. Para isso, vamos usar a conjunção que vimos antes na multiplicação de tipos, e expressar nossa lista como uma tupla recursiva:
@type animal() :: :gato | :cachorro | :hamster | :peixe | :galinha
@type lista_de_animais() :: {} | {animal(), lista_de_animais()}
meus_bichos = {:gato, {:hamster, {:peixe, {:peixe, {:peixe, {:peixe, {}}}}}}}
Vejamos que não precisamos nos restringir ao tipo list() nativo do Elixir para definir nosso tipo. Não é o tipo de coisa que utilizaríamos em um projeto em produção, é claro: para isso, é sempre recomendado utilizar o padrão estabelecido pela comunidade. Mesmo assim, o que esses tipos representam é fundamentalmente a mesma coisa -- um tipo algébrico recursivo definido pela conjunção de um elemento a uma lista de elementos.
[:gato, :hamster, :peixe, :peixe, :peixe, :peixe]
#é o mesmo que
[:gato | [:hamster | [:peixe, [:peixe | [:peixe | :peixe | []]]]]]
#que não é muito diferente de
{:gato, {:hamster, {:peixe, {:peixe, {:peixe, {:peixe, {}}}}}}}
Outro exemplo de um tipo recursivo é a árvore binária, que pode ser definida como:
@type planta() :: {} | :folha | {planta(), planta()}
grama = :folha
muda = {:folha, :folha}
arbusto = {
{
:folha, {
:folha, {
:folha,
{}
}
}
},
:folha
}
No exemplo, nosso tipo planta() não é muito útil, porque não nos permite registrar nada além de folhas. Mas o poder expressivo desse tipo fica claro se percebermos que o tipo folha poderia ser qualquer outro tipo, simples ou complexo.
Observação sobre os exemplos em Elixir
Antes de concluir, vale adicionar uma nota sobre a relevância deste assunto no contexto da linguagem de programação Elixir e do ecossistema Erlang. Ambas as linguagens são dinamicamente tipadas e, desta forma, a verificação de tipos de dados ocorre em tempo de execução. Isso significa que, em geral, as especificações de tipos servem mais para documentar o código do que efetivamente restringir a execução, garantir a correção e acusar erros. Desta forma, o entendimento de tipos de dados algébricos não é tão indispensável para a programação como no caso de linguagens estaticamente tipadas. Mesmo assim, optamos por utilizar o Elixir para os exemplos pela familiaridade e gosto pelo linguagem.
Precisamos ainda dar os devidos créditos. Este artigo é inspirado na apresentação do programador e matemático Bartosz Milewski, a propósito de tipos algébricos e sua representação na linguagem C++. A apresentação é de 2018, e pode ser vista clicando aqui.
Neste artigo, vimos como é possível expandir nossa capacidade de representar informações por meio da compreensão dos tipos de dados algébricos, que nos permitem compor tipos singulares em tipos mais complexos e expressivos. Vimos, ainda, como certas estruturas que já conhecemos são, fundamentalmente, expressões dessa álgebra de tipos de dados.
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