A Rinha de Backend é um evento organizado pelo Francisco Zanfrancheschi. As regras são simples, você precisa criar uma API rodando em docker compose, seguindo a arquitetura mínima pedida, e que sobreviva a um teste de carga previamente escrito.
Eu novamente estou participando, e novamente estou fazendo em F#. O repositório com o projeto está no GitHub:
Crébito
O tema desse ano foi controle de concorrência, criar uma API com dois endpoints:
- Saldo e extrato
GET /clientes/{id}/extrato
- Débito e crédito
POST /clientes/{id}/transacoes
Tudo que você tem que fazer é garantir que a sua API, com no mínimo duas instâncias, garanta a consistência das transações sem deixar que o saldo do usuário estoure o limite.
Garantindo a consistência
O maior problema dessa ediçao da Rinha é garantir que as transações sejam consistentes. O esquema mínimo da persistência pede por duas entidades: Saldo
e Transação
.
Saldo é o valor atual da conta do cliente, e transação é a lista de operações de débito e crédito aplicadas a conta.
Precisamos garantir duas coisas:
- Que o
saldo - limite
nunca seja negativo - Que transações inválidas não sejam salvas na tabela
Tudo isso enquanto garantimos que a performance da API seja a melhor possível.
Escolhi usar PostgreSQL como banco de dados. O DDL completo está aqui.
Saldo
Eu não sou nenhum mago do SQL, então a estragégia aqui é a mais simples possível. Uma constraint
do tipo CHECK
que garante que o saldo nunca seja negativo.
-- UNLOGGED TABLE é uma tabela que não é escrita no WAL, o que
-- significa que não pode participar de transações.
CREATE UNLOGGED TABLE balance (
id SERIAL PRIMARY KEY,
client_id INT NOT NULL,
amount INT NOT NULL,
overdraft_limit INT NOT NULL,
-- Garante que o "saldo - limite" nunca seja negativo
CONSTRAINT amount_overdraft_limit_check CHECK (amount + overdraft_limit >= 0),
CONSTRAINT balance_client_id_id_key UNIQUE (client_id, id)
);
CREATE INDEX balance_client_id_idx ON balance (client_id);
Transação
As duas tabelas que eu tenho, balance
e transactions
, são criadas como UNLOGGED TABLE
. Isso aumenta a performance já que o PostgreSQL não precisa escrever essas tabelas no WAL
(Write Ahead Log), que é um arquivo de log que o PostgreSQL usa pra garantir a consistência dos dados.
A desvantagem é que essas tabelas não podem participar de transações, então pra garantir a integrigade entre as duas a ordem das operações é importante.
Outra coisa que ajuda a performance é agrupar as operações de atualizar o saldo e salvar a transação em uma única chamada. Isso também é crítico pra garantir a consistência dos dados.
Pra isso, as duas operações são feitas dentro de uma STORED PROCEDURE
que é chamada pela API:
CREATE OR REPLACE PROCEDURE withdrawal(a_client_id INT, w_amount INT, w_description TEXT) AS $$
BEGIN
-- Se a constraint for violada, a PROC para aqui e o saldo não é
-- atualizado, nem a transação é salva
UPDATE balance
SET amount = amount - w_amount
WHERE client_id = a_client_id;
INSERT INTO transactions (client_id, amount, transaction_type, transaction_date, description)
VALUES (a_client_id, w_amount, 'WITHDRAWAL', NOW(), w_description);
END;
$$ LANGUAGE plpgsql;
Caso a chamada pra withdrawal
falhe, eu capturo a exceção e retorno 422
na API.
Minha implementação em F
Assim como eu fiz na minha última participação na Rinha de 2023, escolhi fazer tudo em F#.
F# é uma linguagem funcional, multi-paradigma, que roda em cima do Dotnet CLR. Ela foi criada por Don Syme na Microsoft, e pertence a família ML de linguagens de programação funcionais, assim como o OCaml.
Esse artigo tem um bom resumo das diferenças entre F# e OCaml.
Um dos méritos do F# é ser bem expressivo, e bastante enxuto, então a implementação da API inteira ficou em menos de 200 linhas de código. O que eu vou fazer aqui nesse aquivo é um code-review de cada módulo como forma de apresentar o F# pra vocês.
Eu vou omitir algums imports pra facitar a leitura, e incluir comentários que não estão no fonte, mas a maior parte do código vai estar aqui.
Modelo
Aqui eu defino os DTOs que a aplicação vai usar. Como mais na frente você vai ver que eu estou usando SQL direto, não preciso me preocupar em separar o que vai pra View e o que vai pro Banco.
Uma coisa que vale a pena explicar aqui sobre F# é que ele tem o conceito de módulos. Módulos são usados pra organizar funções, tipos e valores relacionados.
Módulos são diferentes de namespaces, que também existem em C#, porquê esses não suportam funçoes nem valores, só declaracão de tipos ou módulos. Um módulo funciona mais ou menos como uma classe estática, onde tudo que é declarado vira uma propriedade pública.
Os DTOs declarados nesse módulo são records. Em F# records diferem de classes por:
- Imutáveis por padrão, uma vez criados não podem ser mudados
- Tem igualdade estrutural, dois record são iguais se todas as propriedades forem iguais
- Pode ser usados em pattern matching pra desmembrar e comparar todos os seus campos
module Model =
// F# é compatível com C#, então podemos usar o pacote
// System.Text.JSON padrão do Dotnet pra serialização
let options = JsonSerializerOptions()
// Configuração da serialização em JSON pra usar `snake_case`
// esse objeto `options` vai ser usado lá na frente pelos
// controllers
options.PropertyNamingPolicy <- JsonNamingPolicy.SnakeCaseLower
// View object pra receber as requisições de débito/crédito
type TransacaoRequest =
{ valor: int
tipo: string
descricao: string }
// Resposta pra uma transação de débito/crédito
type TransacaoResponse = { limite: int; saldo: int }
// Os tipos list, array, map, option e outros podem ser
// declarados como <Tipo do Item> list
type ExtratoResponse =
{ saldo: ExtratoSaldoResponse
ultimasTransacoes: ExtratoTransacaoResponse list }
// Em F# você precisa declarar os tipos antes de poder
// referenciar eles. Mas você pode usar `and` pra
// encadear as declarações e ajudar um pouco na hora
// de ler o código.
and ExtratoSaldoResponse =
{ limite: int
total: int
dataExtrato: DateTime }
and ExtratoTransacaoResponse =
{ valor: int
tipo: string
descricao: string
realizadaEm: DateTime }
Persistência
Eu estou usando PostgreSQL como banco de dados, e um wrapper F# para ADO.Net chamado Donald que oferece uma API funcional em cima da API normal em C#.
A primeira coisa é declarar um novo módulo Persistence
, e declarar algumas funções que vão receber um IDataReader
, que é um helper pra ler os dados do resultset
que vem do banco e retornar um dos DTOs declarados em Model
.
module Persistence =
open Donald
open Model // Modulo onde declaramos os DTOs
let transacaoResposneDataReader (rd: IDataReader) : TransacaoResponse =
{ saldo = rd.ReadInt32 "amount"
limite = rd.ReadInt32 "overdraft_limit" }
let balanceDataReader (rd: IDataReader) : ExtratoSaldoResponse =
{ total = rd.ReadInt32 "amount"
limite = rd.ReadInt32 "overdraft_limit"
dataExtrato = DateTime.Now }
// Pattern Matching para mapear o tipo da transação que vem do banco
// como "DEPOSIT"/"WITHDRAWAL" e precisa ser retornada como "c"/"d" na API
let tipoMapper =
function
| "DEPOSIT" -> "c"
| "WITHDRAWAL" -> "d"
| _ -> "?"
let transactionDataReader (rd: IDataReader) : ExtratoTransacaoResponse =
{ valor = rd.ReadInt32 "amount"
tipo = rd.ReadString "transaction_type" |> tipoMapper
descricao = rd.ReadString "description"
realizadaEm = rd.ReadDateTime "transaction_date" }
Agora eu declaro duas funções, withdrawal
pra débitos e deposit
pra créditos.
Eu estou usando Npgsql
como driver pra PostgreSQL, e o Donald
tem um módulo Db
que oferece uma API funcional pra criar comandos, setar parâmetros, e executar queries.
Em F# você pode usar o forward pipe |>
pra passar o resultado de uma função como argumento pra outra, o que deixa o código mais legível.
Um truque que eu usei aqui foi declarar mais de um statement SQL em cada query. Assim eu consigo fazer a transação de débito/crédito e já retornar o saldo atualizado em uma única chamada.
A última chamada de cada função é pra Db.Async.querySingle
, que é uma função que executa a query e retorna um único resultado. O transacaoResposneDataReader
que eu declarei lá em cima é usado pra mapear o resultado do banco pra um dos DTOs.
let withdrawal (dbconn: NpgsqlConnection) (clientId: int, amount: int, description: string) =
let sql =
"CALL withdrawal(@clientId, @amount, @description);
SELECT amount, overdraft_limit FROM balance WHERE client_id = @clientId;"
let parameters =
[ "@clientId", sqlInt32 clientId
"@amount", sqlInt32 amount
"@description", sqlString description ]
dbconn
|> Db.newCommand sql
|> Db.setParams parameters
|> Db.Async.querySingle transacaoResposneDataReader
O controle de concorrência é feito pelo PostgreSQL, a STORED PROCEDURE
responsável pelo débito (withdrawal
) cria uma transação e depende de uma CONSTRAINT
do tipo CHECK
pra garantir que o saldo não fique negativo.
let deposit (dbconn: NpgsqlConnection) (clientId: int, amount: int, description: string) =
let sql =
"CALL deposit(@clientId, @amount, @description);
SELECT amount, overdraft_limit FROM balance WHERE client_id = @clientId;"
let parameters =
[ "@clientId", sqlInt32 clientId
"@amount", sqlInt32 amount
"@description", sqlString description ]
dbconn
|> Db.newCommand sql
|> Db.setParams parameters
|> Db.Async.querySingle transacaoResposneDataReader
Finalmente eu declaro duas funções para pegar o saldo e as últimas transações do cliente, que eu combino no Controller
pra retornar o extrato.
let getBalance (dbconn: NpgsqlConnection) (clientId: int) =
let sql = "SELECT amount, overdraft_limit FROM balance WHERE client_id = @clientId"
let parameters = [ "@clientId", sqlInt32 clientId ]
dbconn
|> Db.newCommand sql
|> Db.setParams parameters
|> Db.Async.querySingle balanceDataReader
let getTransactions (dbconn: NpgsqlConnection) (clientId: int) =
let sql =
"""
SELECT amount, transaction_type, description, transaction_date
FROM transactions
WHERE client_id = @clientId
ORDER BY transaction_date DESC LIMIT 10
"""
let parameters = [ "@clientId", sqlInt32 clientId ]
dbconn
|> Db.newCommand sql
|> Db.setParams parameters
|> Db.Async.query transactionDataReader
Controllers
Pra implementar a API REST eu estou usando uma biblioteca chamada Falco que reutiliza componentes do ASP.NET Core e oferece uma API funcional em F#.
As duas primeiras funções que eu declaro utilizam dois tipos de monad: Option
e Result
.
A forma preferida de lidar com Null
em F# é através do tipo Option
, que pode ter dois valores: Some <T>
e None
.
E Result
é utilizado pra representar o resultado de alguma operação, também tendo dois valores: Ok <T>
e Error <Exception>
.
module Controller =
open Model
let optionToResponse (res: 'a option) =
match res with
| Some x -> Response.ofJsonOptions options x
| None -> Response.withStatusCode 404 >> Response.ofEmpty
let deserialize ctx = task {
try
let! obj = Request.getJsonOptions options ctx
return Ok obj
with ex ->
return Error ex
}
Services.inject
é uma função do Falco
que apresenta a funcionalidade de dependency injection do ASP.NET Core de forma funcional.
No caso abaixo, Services.inject<NpsqlConnection>
recebe como parâmetro uma função, cujo parâmetro dbconn
é injetado com uma instância da conexão com o banco de dados.
A sintaxe fun parametros -> ...
é como você declara um lambda
, ou função anônima, em F#.
O bloco task { ... }
é uma computational expression
, que é uma feature do F#. Expressões computacionais oferecem uma forma de abstrair detalhes de uma computação para que você possa se concentrar na lógica.
Nesse caso a expressão task { ... }
retorna um System.Threading.Task
do Dotnet. É a versão do F# do async/await
do C#, sendo que o F# implementou esse conceito primeiro.
Tem uma série de tutoriais muito bons que explica o funcionamento de expressões computacionais no site F# For fun and profit.
Abaixo a função que retorna o extrato:
let balance =
Services.inject<NpgsqlConnection> (fun dbconn ->
fun ctx ->
// "task" é como se lida com async em F#
task {
let clientId = (Request.getRoute ctx).GetInt "id" |> int
// "let!" bloqueia até que o valor esteja disponível
let! mayBeSaldo = Persistence.getBalance dbconn clientId
let! transacoes = Persistence.getTransactions dbconn clientId
return
mayBeSaldo
|> Option.map (fun saldo ->
{ saldo = saldo
ultimasTransacoes = transacoes })
|> optionToResponse <| ctx
})
E aqui é a função que faz as transações, que é a mais complexa. Ela faz a validação do payload, e chama a função de débito ou crédito dependendo do tipo da transação.
Uma coisa que provavélmente eu deveria melhorar aqui é que eu dependo da exceção pra retornar um erro 422
caso a transação estoure o limite do cliente. Essa exceção vem lá do PostgreSQL na minha STORED PROCEDURE, e existem formas de tratar o erro no próprio SQL e retornar um erro mais amigável.
let transaction =
Services.inject<NpgsqlConnection> (fun dbconn ->
fun ctx ->
task {
let clientId = (Request.getRoute ctx).GetInt "id"
let! request = deserialize ctx
match request with
| Error _ -> return (Response.withStatusCode 422 >> Response.ofPlainText "Bad Request") ctx
| Ok request ->
// Outro ponto que eu poderia melhorar...
// Tudo isso aqui poderia estar em uma função declarada lá em cima
// no módulo Model... ¯\_(ツ)_/¯
if request.valor <= 0 || request.descricao = null || request.descricao.Length > 10 || request.descricao.Length = 0 then
return (Response.withStatusCode 422 >> Response.ofPlainText "Bad Request") ctx
else
// GO HORSE PROGRAMMING
// Aqui eu trato a exception que pode vir do banco caso
// a constraint seja violada
try
let! response =
// Pattern matching!
match request.tipo with
| "c" -> Persistence.deposit dbconn (clientId, request.valor, request.descricao) // Credito
| "d" -> Persistence.withdrawal dbconn (clientId, request.valor, request.descricao) // Debito
| _ -> failwith "Invalid transaction type"
return response |> optionToResponse <| ctx
with _ ->
return (Response.withStatusCode 422 >> Response.ofEmpty) ctx
})
Routing
Finalmente o ponto de entrada do programa. Aqui o Falco
oferece uma API funcional pra configurar o servidor.
// "EntryPoint" diz ao compilador que essa função é o ponto de entrada do aplicativo
[<EntryPoint>]
let main args = // Função "main" semelhante a C/C++/C#/Java
let env = Environment.GetEnvironmentVariable "ASPNETCORE_ENVIRONMENT"
let config = configuration [||] {
required_json "appsettings.json"
optional_json $"appsettings.{env}.json"
}
webHost args {
// Configura a injeção de dependência, adicionando a conexão com o banco
add_service (_.AddNpgsqlDataSource(config.GetConnectionString("Default")))
// Configura os endpoints
// Controller.transaction e Controller.balance foram declaradas no modulo
// Controller lá em cima
endpoints
[ post "/clientes/{id}/transacoes" Controller.transaction
get "/clientes/{id}/extrato" Controller.balance ]
}
0 // A função main precisa retornar um inteiro
Testes
Abaixo os resultados do teste de carga. Eu acho que a performance está excelente pra um projeto onde eu coloquei muito pouco esforço em otimizar qualquer coisa.
Os resultados completos você pode ver aqui.
Conclusão
Se você chegou até aqui, muito obrigado! Espero que você tenha gostado de conhecer um pouco mais sobre F#. É minha linguagem de programação favorita, e a melhor linguagem da qual você nunca ouviu falar!
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