Algo que ajuda no desenvolvimento é a reutilização de código. Em orientação a objetos, essa reutilização pode ocorrer através de herança, onde um objeto pode se comportar como um objeto da sua própria classe, como também da classe que herdou.
Adicionando funcionalidades
Uma das utilidades da herança é estender uma classe para adicionar funcionalidades. Pensando no contexto das postagens anteriores, poderíamos querer criar um usuário e senha para algumas pessoas poderem acessar o sistema. Isso poderia ser feito adicionando atributos usuário e senha para as pessoas, além de uma função para validar se os dados estão corretos, e assim permitir o acesso ao sistema. Porém isso não pode ser feito para todas as pessoas, e sim apenas para aqueles que possuem permissão de acesso.
Sem orientação a objetos
Voltando a solução com dicionários (sem utilizar orientação a objetos), isso consistiria em criar um dicionário com a estrutura de uma pessoa, e em seguida estender essa estrutura com os novos campos de usuário e senha nesse mesmo dicionário, algo como:
# Arquivo: pessoa.py
def init(pessoa, nome, sobrenome, idade):
pessoa['nome'] = nome
pessoa['sobrenome'] = sobrenome
pessoa['idade'] = idade
def nome_completo(pessoa):
return f"{pessoa['nome']} {pessoa['sobrenome']}"
# Arquivo: pessoa_autenticavel.py
def init(pessoa, usuario, senha):
pessoa['usuario'] = usuario
pessoa['senha'] = senha
def autenticar(pessoa, usuario, senha):
return pessoa['usuario'] == usuario and pessoa['senha'] == senha
import pessoa
import pessoa_autenticavel
p = {}
pessoa.init(p, 'João', 'da Silva', 20)
pessoa_autenticavel.init(p, 'joao', 'secreta')
print(pessoa.nome_completo(p))
print(pessoa_autenticavel.autenticar(p, 'joao', 'secreta'))
Porém nessa solução é possível que o programador esqueça de chamar as duas funções init
diferentes, e como queremos que todo dicionário com a estrutura de pessoa_autenticavel
contenha também a estrutura de pessoa
, podemos chamar o init
de pessoa dentro do init
de pessoa_autenticavel
:
# Arquivo: pessoa_autenticavel.py
import pessoa
def init(p, nome, sobrenome, idade, usuario, senha):
pessoa.init(p, nome, sobrenome, idade)
p['usuario'] = usuario
p['senha'] = senha
... # Demais funções
import pessoa
import pessoa_autenticavel
p = {}
pessoa_autenticavel.init(p, 'João', 'da Silva', 20, 'joao', 'secreta')
print(pessoa.nome_completo(p))
print(pessoa_autenticavel.autenticar(p, 'joao', 'secreta'))
Nesse caso foi necessário alterar o nome do argumento pessoa
da função pessoa_autenticavel.init
para não conflitar com o outro módulo importado com esse mesmo nome. Porém ao chamar um init
dentro de outro, temos a garantia de que o dicionário será compatível tanto com a estrutura pedida para ser criada pelo programador, quanto pelas estruturas pais dela.
Com orientação a objetos
class Pessoa:
def __init__(self, nome, sobrenome, idade):
self.nome = nome
self.sobrenome = sobrenome
self.idade = idade
def nome_completo(self):
return f'{self.nome} {self.sobrenome}'
class PessoaAutenticavel(Pessoa):
def __init__(self, nome, sobrenome, idade, usuario, senha):
Pessoa.__init__(self, nome, sobrenome, idade)
self.usuario = usuario
self.senha = senha
def autenticar(self, usuario, senha):
return self.usuario == usuario and self.senha == senha
p = PessoaAutenticavel('João', 'da Silva', 20, 'joao', 'secreta')
print(Pessoa.nome_completo(p))
print(PessoaAutenticavel.autenticar(p, 'joao', 'secreta'))
A principal novidade desse exemplo é que ao declarar a classe PessoaAutenticavel
(filha), foi declarado a classe Pessoa
(pai) entre parênteses, isso faz o interpretador Python criar uma cópia dessa classe estendendo-a com as novas funções que estamos criando. Porém pode ser um pouco redundante chamar Pessoa.__init__
dentro da função __init__
sendo que já foi declarado que ela estende Pessoa
, podendo ser trocado por super()
, que aponta para a classe que foi estendida. Exemplo:
class PessoaAutenticavel(Pessoa):
def __init__(self, nome, sobrenome, idade, usuario, senha):
super().__init__(nome, sobrenome, idade)
self.usuario = usuario
self.senha = senha
... # Demais funções
Assim se evita repetir o nome da classe, e já passa automaticamente a referência para self
, assim como quando usamos o açúcar sintático apresentado na primeira postagem dessa série. E esse açúcar sintática também pode ser usado para chamar tanto as funções declaradas em Pessoa
quanto em PessoaAutenticavel
. Exemplo:
p = PessoaAutenticavel('João', 'da Silva', 20, 'joao', 'secreta')
print(p.nome_completo())
print(p.autenticar('joao', 'secreta'))
Esse método também facilita a utilização das funções, uma vez que não é necessário lembrar em qual classe que cada função foi declarada. Na verdade, como PessoaAutenticavel
estende Pessoa
, seria possível executar também PessoaAutenticavel.nome_completo
, porém eles apontam para a mesma função.
Sobrescrevendo uma função
A classe Pessoa
possui a função nome_completo
que retorna uma str
contento nome e sobrenome. Porém no Japão, assim como em outros países asiáticos, o sobrenome vem primeiro, e até estão pedindo para seguir a tradição deles ao falarem os nomes de japoneses, como o caso do primeiro-ministro, mudando de Shinzo Abe para Abe Shinzo.
Com orientação a objetos
Isso também pode ser feito no sistema usando herança, porém em vez de criar uma nova função com outro nome, é possível criar uma função com o mesmo nome, sobrescrevendo a anterior, porém apenas para os objetos da classe filha. Algo semelhante ao que já foi feito com a função __init__
. Exemplo:
class Japones(Pessoa):
def nome_completo(self):
return f'{self.sobrenome} {self.nome}'
p1 = Pessoa('João', 'da Silva', 20)
p2 = Japones('Shinzo', 'Abe', 66)
print(p1.nome_completo()) # João da Silva
print(p2.nome_completo()) # Abe Shinzo
Essa relação de herança traz algo interessante, todo objeto da classe Japones
se comporta como um objeto da classe Pessoa
, porém a relação inversa não é verdade. Assim como podemos dizer que todo japonês é uma pessoa, mas nem todas as pessoas são japonesas. Ser japonês é um caso mais específico de pessoa, assim como as demais nacionalidades.
Sem orientação a objetos
Esse comportamento de sobrescrever a função nome_completo
não é tão simples de replicar em uma estrutura de dicionário, porém é possível fazer. Porém como uma pessoa pode ser tanto japonês quanto não ser, não é possível saber de antemão para escrever no código pessoa.nome_completo
ou japones.nome_completo
, que diferente do exemplo da autenticação, agora são duas funções diferentes, isso precisa ser descoberto dinamicamente quando se precisar chamar a função.
Uma forma de fazer isso é guardar uma referência para a função que deve ser chamada dentro da própria estrutura. Exemplo:
# Arquivo: pessoa.py
def init(pessoa, nome, sobrenome, idade):
pessoa['nome'] = nome
pessoa['sobrenome'] = sobrenome
pessoa['idade'] = idade
pessoa['nome_completo'] = nome_completo
def nome_completo(pessoa):
return f"{pessoa['nome']} {pessoa['sobrenome']}"
# Arquivo: japones.py
import pessoa
def init(japones, nome, sobrenome, idade):
pessoa(japones, nome, sobrenome, idade)
japones['nome_completo'] = nome_completo
def nome_completo(japones):
return f"{pessoa['sobrenome']} {pessoa['nome']}"
import pessoa
import japones
p1 = {}
pessoa.init(p1, 'João', 'da Silva', 20)
p2 = {}
japones.init(p2, 'Shinzo', 'Abe', 66)
print(p1['nome_completo'](p1)) # João da Silva
print(p2['nome_completo'](p2)) # Abe Shinzo
Perceba que a forma de chamar a função foi alterada. O que acontece na prática é que toda função que pode ser sobrescrita não é chamada diretamente, e sim a partir de uma referência, e isso gera um custo computacional adicional. Como esse custo não é tão alto (muitas vezes sendo quase irrelevante), esse é o comportamento adotado em várias linguagens, porém em C++, por exemplo, existe a palavra-chave virtual
para descrever quando uma função pode ser sobrescrita ou não.
Considerações
Herança é um mecanismo interessante para ser explorado com o objetivo de reaproveitar código e evitar repeti-lo. Porém isso pode vir com alguns custos, seja computacional durante sua execução, seja durante a leitura do código, sendo necessário verificar diversas classes para saber o que de fato está sendo executado, porém isso também pode ser usado para ocultar e abstrair lógicas mais complicadas, como eu já comentei em outra postagem.
Herança também permite trabalhar com generalização e especialização, podendo descrever o comportamento mais geral, ou mais específico. Ou simplesmente só adicionar mais funcionalidades a uma classe já existente.
Assim como foi utilizado o super()
para chamar a função __init__
da classe pai, é possível utilizá-lo para chamar qualquer outra função. Isso permite, por exemplo, tratar os argumentos da função, aplicando modificações antes de chamar a função original, ou seu retorno, executando algum processamento em cima do retorno dela, não precisando rescrever toda a função.
Top comments (2)
Estou adorando essa sua série de artigos! Minha experiência com orientação à objetos é apenas com Java, e é muito interessante ver como os conceitos gerais de OO são aplicados à outras linguagens, principalmente as diferenças. Uma dúvida que me surgiu, é se tem como aplicar herança múltipla a uma nova classe, ela tendo por exemplo três classes "pai". No Java, herança múltipla não existe, o máximo que pode ser feito é a classe extender outra classe e implementar uma interface, mas não é a mesma coisa sabe? hehe
É interessante ver essas diferenças nas implementações. Historicamente existe uma comparação da forma como Smalltalk e Modula-2 implementam orientação a objetos. Outra comparação que poderia ser feita é entre C++ e Objective-C, que teoricamente ambas seriam C com orientação a objetos, porém apresentam diferenças. Em relação a herança múltipla, isso é discutido no texto seguinte como você já viu.